O apagamento destes feitos parece criar uma falsa consciência do passado. Frases repetidas da nossa diferença, substituem-se ao estudo e à revelação da verdade (por mais dolorosa que seja).

 

Hoje quero recordar o caso dos restos mortais de pessoas escravizadas encontrados no Vale da Gafaria em Lagos no Algarve. Dou a palavra à dissertação de Mestrado de António Pinto defendida em 2023:

Em 2009, uma intervenção arqueológica de cariz preventivo iniciada pela construção de um parque de estacionamento público na zona extramuros da cidade de Lagos, conhecida como Vale da Gafaria, colocou a descoberto o local de descarte de pessoas escravizadas mais antigo da Europa. Um sítio sem precedentes no mundo, que proporcionou a oportunidade única de exumar, estudar e documentar os restos mortais de 158 pessoas africanas escravizadas. Todo este contexto e a sua antiguidade conferem-lhe tanto um caráter único e exclusivo, como um valor científico, histórico e patrimonial inestimável.

 

Sabemos que essas pessoas eram africanas, identificados por diversas manifestações culturais, nomeadamente ao nível dos dentes, e sabemos foram sujeitas a grande violência como atesta o facto de muitos terem ossos partidos. A sua morte, aliás, ocorreu pouco tempo depois da sua chegada a Lagos no Algarve. Sabemos também que não foram enterrados, mas apenas atirados de forma desumana para um local que na época era uma lixeira.

 

Estes restos mortais atestam como foram tratados os primeiros africanos e africanas escravizadas trazidas pela força para Portugal. Daqui podiam ter saído inúmeros estudos académicos, artigos de divulgação, apuramento preciso do local de origem destas pessoas, uma maior divulgação da nossa História, um combate aos mitos da escravização benigna.

 

Passaram quase 20 anos. Nada disso foi feito. Apenas o apagamento destes factos, o silenciamento da memória desta realidade, a continuação da promoção de uma “História” falsa, desmentida pelos acontecimentos mas que serve para alimentar uma ideologia racista e xenófoba. Uma “História” que os jovens repetem para troça dos estrangeiros que conhecem melhor a nossa realidade histórica do que nós.

 

É que em contraste com a indiferença nacional com que a descoberta dos restos mortais destes ancestrais, cientistasde outros países tem estudado as ossadas e ativistas estrangeiros (nomeadamente norte-americanos e brasileiros) tem divulgado o tema.

 

Recentemente a Professora de antropologia molecular Vicky M. Oelze, docente da Universidade da CalifórniaSanta Cruz, esteve entre nós para apresentar os estudos de isótopos que foram feitos aos dentes dos esqueletos que os possuíam. Através da composição química foi possível determinar as probabilidades da dieta e da origem geográfica das pessoas escravizadas trazidas pela força para Lagos. Um estudo amplo em que participaram académicos e estudantes africanos, brasileiros e norte-americanos.

 

Trata-se de um sítio único no mundo. O mais antigo local de depósito de cadáveres de africanos escravizados na Europa. E o que fez Portugal? Depois de muito pressionado retirou as ossadas (158) para de seguidaarrasar o local arqueológico, construindo-lhe em cima um parque de estacionamento. Eis o racismo institucional no seu pior. O apagamento histórico no seu expoentemáximo.

 

O caso do Vale da Gafaria merece ser conhecido, divulgado, explicado. Estes restos mortais contam-nos a história de um crime particular (cometido contra estas pessoas concretas) inserido num crime mais lato, o da escravização de seres humanos e o seu comércio internacional.

 

Quando teremos coragem para enfrentar a verdade do nosso passado histórico? Quando deixaremos de ser um povo a viver na ilusão de um passado inexistente? Quando deixaremos de ser ridicularizados por desconhecer o que os outros povos sabem de nós? Um povo sem passado, não pode ter futuro.