Assim nasceu a farinheira, mistura de pão, azeite, farinha, alho e colorau, cuja cor alaranjada imitava a do chouriço. À distância, quem olhasse para a lareira veria fumeiros iguais aos dos vizinhos. Era o disfarce perfeito. Por dentro, porém, não havia sangue nem carne, apenas o engenho de uma comunidade que, privada da sua fé pública, fez da cozinha um território de resistência.
As regiões do Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes foram as que mais conservaram essa tradição. Nas vilas de Castelo de Vide, Marvão, Belmonte e Trancoso, onde as judiarias deixaram marcas visíveis, a farinheira tornou-se presença habitual nas feiras e nas mesas. Era o símbolo da integração aparente e da fé escondida. Cada casa, cada fumeiro, repetia o gesto da sobrevivência.
Com o tempo, o segredo perdeu-se e o paladar ficou. O que começou como subterfúgio tornou-se tradição, passando da necessidade à identidade. Hoje, quando a farinheira repousa sobre o prato, grelhada, frita ou sobre o ovo escalfado de um bacalhau à Brás reinventado, poucos recordam a sua origem de silêncio e medo.
Mas talvez devêssemos lembrar. Porque cada fatia de farinheira é também um fragmento da história dos cristãos-novos, daqueles que disfarçaram o seu destino dentro de uma tripa de farinha. E se a cozinha é, como dizia Eça, a mais sincera forma de poesia popular, então a farinheira é o poema mais engenhoso que a perseguição inquisitorial inspirou em Portugal.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor