Há ironias históricas que doem. Celebrar meio século de democracia enquanto se cava, alegremente, o túmulo da Constituição que a sustenta é uma delas.

A esquerda portuguesa — outrora herdeira das conquistas de Abril — está hoje perdida entre discursos de pureza ideológica e pequenas guerras de território, incapaz de entender que o inimigo já não está à direita: está na sua própria dispersão.

Não é preciso ser profeta nem politólogo para o prever: se as esquerdas mantiverem esta dança de vaidades nas presidenciais de 2026, estarão a entregar o poder — e o destino da Constituição — nas mãos de quem há muito sonha em rasgá-la.

Enquanto Catarina Martins denuncia as falhas do Estado — na saúde, na habitação, na educação — esquecendo-se que o Estado que hoje falha é o mesmo que as esquerdas fundaram, o Livre reúne-se para decidir entre apoiar Jorge Pinto ou abster-se, como quem discute a cor das cadeiras enquanto o navio arde.

E o PCP? O histórico guardião dos ideais constitucionais parece agora um espectador resignado, mais preocupado em preservar a sua pureza doutrinária do que em salvar o regime que ajudou a criar.

A verdade é simples e brutal: a Constituição da República Portuguesa é hoje uma peça em risco, e o seu maior inimigo não é a extrema-direita — é a desorientação da esquerda.

Bruno Batista, diretor de campanha no Benfica, percebeu mais de estratégia política num só gesto — apoiar o adversário para garantir a vitória do projeto — do que a esquerda portuguesa inteira em meses de discursos inflamados.

A República precisa de lucidez, não de trincheiras. Precisa de um pacto mínimo entre quem acredita na liberdade, na igualdade e na solidariedade. O resto é ruído.

Em 1976, o país soube erguer-se das cinzas da ditadura. Em 2026, arrisca-se a cair na armadilha da sua própria soberba.
E se a esquerda não acordar agora, o epitáfio será cruel:
"Aqui jaz a Constituição de Abril, morta pela divisão dos seus próprios filhos."