A tradição preservou sobretudo a imagem de um pastor atento aos pobres, às crianças e aos marginalizados. Os relatos hagiográficos, ainda que não possam ser lidos como crónicas modernas, refletem práticas e valores concretos das primeiras comunidades cristãs. A caridade discreta, feita sem ostentação, tornou-se o traço dominante da sua memória. O episódio do auxílio anónimo a uma família em risco de miséria não é apenas uma narrativa piedosa, mas a expressão de um ideal cristão profundamente enraizado na cultura europeia.
A devoção a São Nicolau espalhou-se rapidamente pelo Oriente e pelo Ocidente cristão. A trasladação das suas relíquias para Bari, no século XI, reforçou a sua popularidade e transformou-o num dos santos mais venerados da Idade Média. Tornou-se padroeiro de crianças, estudantes, marinheiros e comerciantes, num tempo em que a proteção espiritual era sentida como uma necessidade concreta da vida quotidiana.
Historicamente, São Nicolau não está ligado ao nascimento de Cristo nem à celebração litúrgica do Natal. A sua festa ocorre a 6 de dezembro e manteve-se autónoma durante séculos. Foi a partir da Idade Média que, em várias regiões da Europa, se desenvolveu o costume de oferecer pequenos presentes às crianças no dia de São Nicolau, não como gesto consumista, mas como prática pedagógica e moral. Dar era um ato educativo, carregado de significado ético e religioso.
Com a Reforma Protestante, muitas destas tradições foram deslocadas para o dia de Natal, por rejeição do culto dos santos. Assim, valores associados a São Nicolau, como a generosidade, a partilha e a atenção aos mais frágeis, foram progressivamente integrados na vivência natalícia. A figura histórica foi sendo diluída, mas o seu legado permaneceu.
Nos séculos XIX e XX, sobretudo nos Estados Unidos, deu-se a transformação definitiva de São Nicolau numa personagem secular. O bispo de Mira desapareceu do imaginário coletivo, dando lugar a uma figura simpática, universal e desligada da sua origem cristã. Ainda assim, mesmo nesta forma moderna, subsistem elementos essenciais herdados de São Nicolau, como o dom gratuito, a alegria de dar e a centralidade da infância.
O espírito de Natal, tal como hoje o entendemos, não nasce do comércio nem da modernidade, mas de uma longa sedimentação histórica de valores cristãos. São Nicolau não criou o Natal, mas influenciou decisivamente a forma como ele passou a ser vivido no plano social e cultural. Recuperar a sua dimensão histórica não empobrece a tradição natalícia, antes a enriquece, devolvendo-lhe profundidade, sentido e memória.
Num tempo em que o Natal corre o risco de se reduzir a ritual vazio, a figura histórica de São Nicolau recorda que o essencial nunca esteve nos presentes, mas no gesto de cuidar do outro. É nessa herança, construída ao longo dos séculos, que reside a verdadeira influência de São Nicolau no espírito de Natal.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor