Houve um tempo em que a industrialização foi celebrada como o triunfo absoluto do engenho humano. Mas, como lembrava o filósofo Hans Jonas, “o preço do progresso é a responsabilidade”.

Três décadas depois das primeiras negociações internacionais sobre o clima, a fatura chega agora com uma clareza perturbadora: a pior dívida não é financeira — é a do carbono.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea), órgão ligado ao Ministério do Planeamento e Orçamento do Brasil, quantificou pela primeira vez a escala desse passivo: 90,4 biliões de dólares acumulados pelos países que excederam largamente o que lhes cabia emitir desde 1990. A análise utiliza o orçamento global de carbono definido pelo IPCC, que estima em 2,7 biliões de toneladas de CO₂ o limite para garantir que o aquecimento global não ultrapasse 1,5°C.

O relatório parte de uma metodologia simples e contundente: calcular quanto restava desse orçamento em 1990, distribuí-lo proporcionalmente à população de cada país e medir quem gastou mais do que devia. O resultado expõe, com números irrefutáveis, a dimensão da injustiça climática.

Os Estados Unidos, por exemplo, tinham direito a emitir 57,1 biliões de toneladas de CO₂. Emitiram 183 biliões. O excesso gera a maior dívida climática do planeta: 46,6 biliões de dólares. A Arábia Saudita surge distante, com 9,4 biliões. O Brasil, apesar de ter uma pegada per capita menor do que a dos países ricos, ocupa o terceiro lugar — um reflexo direto do desmatamento massivo que marcou a história recente do país. Consumiu 160% da sua cota e acumula um passivo estimado em 8,7 biliões de dólares.

Enquanto isso, a China, hoje a maior emissora anual, mantém saldo positivo devido à dimensão populacional e ao facto de ter industrializado mais tarde, beneficiando de tecnologias energeticamente mais eficientes. Usou 78,6% da sua quota.

Para Rodrigo Fracalossi, autor do estudo e professor na Universidade de Southampton, o impacto é mais do que estatístico: “Quando se coloca um número sobre a mesa, a escala do problema deixa de ser abstrata. A injustiça climática torna-se mensurável”.

O relatório propõe que esta dívida seja vista como compensação, não punição. Países em débito poderiam investir massivamente em remoção de carbono, reflorestamento ou apoio financeiro direto a regiões mais vulneráveis. “Reconstruir florestas, restaurar ecossistemas, financiar adaptação — tudo isto são formas de saldar a dívida climática”, afirma o documento.

A discussão chega num momento sensível. A COP29, no Azerbaijão, comprometeu-se a mobilizar 300 mil milhões de dólares anuais para o financiamento climático. Parece muito — até ser comparado ao total da dívida: representa apenas 1,43% do passivo acumulado pelos países desenvolvidos. Em Belém, na COP30, o tema promete ser um dos pontos mais tensos.

O estudo também adverte que países com saldo positivo — como a própria China — não devem usar o “crédito” como desculpa para atrasar a transição energética. Embora algumas nações não tenham ultrapassado o limite individual, todas operam num planeta cuja margem coletiva foi drasticamente reduzida.

Tal como escreveu o climatólogo James Hansen, “a atmosfera não negocia”. A matemática do carbono é implacável: o que foi ultrapassado por uns, faltará para todos.

A dívida climática, agora convertida em números, é mais do que uma conta. É um espelho ético. A questão deixou de ser “quem é o culpado?” para tornar-se “quem está disposto a reparar?”. O futuro climático dependerá, em grande medida, da resposta a esta pergunta.


Fontes e referências
Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea): www.ipea.gov.br
IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change: www.ipcc.ch
Folha de S. Paulo – cobertura original da pesquisa
Relatório COP29 – UNFCCC: https://unfccc.int
UNFCCC – Acordo de Paris: https://unfccc.int/process-and-meetings/the-paris-agreement