Janeiro de 1973. Num cenário marcado pelo calor das matas africanas, o som dos helicópteros coloniais ao longe e a esperança ardente de um povo que resistia há mais de uma década, Amílcar Cabral ergueu a sua voz com a força serena dos visionários.

Seria a sua última intervenção pública antes de ser brutalmente assassinado a 20 de janeiro daquele ano, em Conacri. Mas o que deixou ao povo guineense, cabo-verdiano e ao mundo, foi mais do que um discurso: foi um plano de libertação, uma cartografia da dignidade africana e uma lição intemporal de coragem, ética política e soberania popular.

A proclamação de um Estado africano forjado na luta 

“Vamos proclamar a existência do nosso Estado na Guiné”, anunciou Cabral, com a solenidade de quem sabia que o tempo da submissão colonial estava a chegar ao fim. A construção de uma Assembleia Nacional Popular — com representantes escolhidos diretamente pelas populações das regiões libertadas — foi apresentada como prova viva da maturidade política de um povo até então reduzido ao silêncio e à invisibilidade pelo colonialismo português.

Cabral não esperava pela permissão do opressor: proclamava o futuro com base na força do presente. “Não vamos esperar pelo consentimento dos cristãos portugueses”, declarou, reforçando a autodeterminação como ato de justiça, não como concessão.

A consciência como arma

Mais do que fuzis e emboscadas, Cabral valorizava a consciência política como a principal arma da libertação. Apelava à formação de quadros, à mobilização das mulheres, ao envolvimento das populações das zonas urbanas e ocupadas. A independência era, para ele, um processo de educação coletiva.Como afirmou: “A nossa luta é fundamentalmente uma luta política que visa um objetivo concreto: a independência e o progresso da nossa terra.”

Denúncia e combate ao colonialismo com dignidade

Num tom combativo mas sempre humanista, Cabral denunciou a “fome criminosa” em Cabo Verde, a exploração do trabalho forçado, a política de “sangria” imposta pelos portugueses que transferiam os jovens cabo-verdianos para as minas e periferias de Lisboa e Paris. A sua acusação era clara: o colonialismo português não era apenas um erro histórico — era um crime humanitário.Apesar da brutalidade do inimigo, manteve-se firme na ética revolucionária, rejeitando o ódio, e defendendo sempre a dignidade de todos os povos — inclusive o português, também vítima da guerra injusta.

Uma diplomacia africana antes do tempo

Cabral sabia que a guerra se ganhava também nos palcos internacionais. No seu último discurso, fez questão de agradecer o apoio da ONU, da Suécia, da União Soviética, do Senegal, da Tunísia, do Japão, das Igrejas e de outras organizações internacionais. A política externa da futura Guiné-Bissau começava ali, com a sua palavra.O reconhecimento do PAIGC como único representante legítimo do povo guineense e cabo-verdiano pelas Nações Unidas foi, em boa medida, fruto da sua capacidade de diplomata do povo, que colocava o colonialismo português no banco dos réus perante o mundo.

“Morte aos agressores colonialistas portugueses”

O seu apelo final, vibrante, não foi um grito de vingança, mas de justiça histórica: “Morte aos criminosos agressores colonialistas portugueses!” E simultaneamente, “Viva o PAIGC — força, luz e guia do nosso povo na Guiné e Cabo Verde!” Sabia que o seu tempo pessoal podia estar a terminar. Mas a luta, essa, estava apenas a começar a vencer.

Legado eterno, 50 anos depois

Amílcar Cabral tombou poucos dias depois deste discurso. Mas as suas palavras ficaram. E em setembro de 1973, como que cumprindo a profecia do seu último apelo, a Guiné-Bissau proclamou a sua independência unilateral.Cabo Verde, por sua vez, alcançaria a sua independência a 5 de julho de 1975.

Este ano, 2025, assinala-se o 50.º aniversário da Independência de Cabo Verde. Meio século depois, o eco da voz de Cabral continua a inspirar novas gerações, lembrando que a verdadeira independência vai além do território — vive na dignidade, na cultura, na justiça e na soberania do pensamento africano.

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