O relatório, elaborado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra um aumento de 2,5% nas mortes femininas.

O estudo evidencia, ainda, que mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas de violência, representando 68,2% dos assassinatos registrados. A taxa de homicídios para esse grupo é de 4,3 por 100 mil habitantes, ou seja, quase o dobro da taxa entre mulheres não negras (2,5).

      No Brasil, a herança patriarcal é um pilar fundamental para compreender a persistência da violência e da misoginia. Colonizado por uma sociedade com valores fortemente masculinos, o país desenvolveu uma cultura onde a figura do "chefe de família" e a "honra masculina" frequentemente se sobrepunham aos direitos e à integridade das mulheres. A "cultura do estupro" e a culpabilização da vítima são manifestações contemporâneas dessa herança, onde a violência sexual é justificada ou minimizada, e a responsabilidade recai sobre a mulher agredida. O Código Penal brasileiro, por muito tempo, classificava crimes sexuais como "crimes contra os costumes", e não "contra a pessoa", o que reforçava a ideia de que o corpo feminino era um objeto e não um sujeito de direitos.

     Para o sociólogo Pierre Bourdieu, partindo de sua teoria da violência simbólica, a dominação masculina se mantém não apenas por meio da coerção física, mas também por mecanismos simbólicos que naturalizam a subordinação feminina. A socialização, a linguagem, as instituições e as representações midiáticas reproduzem e reforçam a hierarquia de gênero, tornando a dominação invisível e, por vezes, aceita pelas próprias vítimas. A violência, nesse sentido, não é apenas física, mas também psicológica, moral e econômica, tolhendo a autonomia e a liberdade das mulheres.

      Em adição à teoria de Bourdieu, bell hooks nos oferece uma perspectiva crucial para a compreensão da violência contra a mulher, especialmente a violência que recai sobre os corpos negros, ao introduzir o conceito de interseccionalidade. Embora a interseccionalidade como termo tenha sido cunhada por Kimberlé Crenshaw, bell hooks, como uma das principais pensadoras do feminismo negro, desenvolveu e aplicou extensivamente a ideia de que as opressões não atuam de forma isolada, mas se entrecruzam e se reforçam mutuamente.

      A teoria de bell hooks parte do princípio de que a experiência da mulher, e consequentemente a violência que ela sofre, não pode ser compreendida apenas pela categoria "gênero". Para hooks, o patriarcado não opera no vácuo; ele se entrelaça com outros sistemas de dominação, como o racismo, o classismo e o colonialismo. Assim, a violência sofrida por uma mulher negra e pobre no Brasil é diferente da violência sofrida por uma mulher branca e rica, ainda que ambas sejam vítimas de um sistema patriarcal. A mulher negra e pobre, por exemplo, enfrenta violências que são interseções de machismo, racismo e desigualdade de classe, resultando em vulnerabilidades e formas de opressão específicas e agravadas.

      No contexto brasileiro, a teoria de bell hooks é particularmente relevante. A formação social do Brasil, marcada pela escravidão e por uma profunda estratificação social e racial, criou um cenário onde a violência de gênero é intensificada por essas outras formas de opressão. A mulher indígena, a mulher quilombola, a mulher da periferia – cada uma dessas identidades vivencia a violência de gênero de maneiras distintas, com particularidades que precisam ser reconhecidas para que as políticas de combate à violência sejam eficazes.

       Dessa forma, podemos constatar que a violência contra a mulher, exacerbada pelo aumento de feminicídios, longe de ser homogênea, reflete não somente o machismo intrínseco à sociedade, mas também como esse machismo se manifesta de forma mais brutal e letal quando cruzado com o racismo estrutural e a desigualdade socioeconômica. A violência de gênero, em especial no Brasil, não é apenas um resultado da uma herança patriarcal, mas também da forma como o patriarcado se articula com outras estruturas de opressão, tornando a experiência da violência contra a mulher multifacetada e demandando abordagens que considerem essa complexidade interseccional.

 

Carolina Rodrigues

Psicanalista e Historiadora.