“Sou apenas um simples monge budista. Normalmente não celebro aniversários. Mas, como muitos de vocês estão a organizar eventos focados nesta data, permitam-me partilhar algumas reflexões”, escreveu Sua Santidade.

A mensagem é clara: num mundo cada vez mais acelerado e dividido, cultivar a compaixão, a cordialidade e o altruísmo é um ato de coragem e sabedoria.

“É essencial trabalharmos pelo bem-estar material, sim. Mas a verdadeira paz só se alcança através da serenidade interior e do bom coração. Se praticarmos a compaixão com todos — não apenas com os nossos — estaremos a tornar o mundo um lugar melhor.”

Ao completar nove décadas, o Dalai Lama reafirma os compromissos que pautam a sua vida: promover os valores humanos universais, o diálogo inter-religioso e preservar tanto a sabedoria ancestral indiana sobre a mente e as emoções quanto a herança cultural tibetana.

Citando o mestre indiano Shantideva, deixou um voto que ecoa como um mantra coletivo:

“Enquanto o espaço durar,
Enquanto os seres sencientes permanecerem,
Até lá, que eu também possa permanecer
Para dissipar as misérias do mundo.”

 

Quem é o Dalai Lama?

O 14.º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, nasceu como Lhamo Thondup em 6 de julho de 1935. Ainda criança, foi reconhecido como a reencarnação de Avalokiteśvara (Chenrezig, em tibetano), o Bodhisattva da Compaixão. Segundo a tradição budista tibetana, trata-se de um ser iluminado que renasce ciclicamente para aliviar o sofrimento dos vivos.

Sua escola filosófica é a Gelug, vertente mais recente do Budismo Tibetano, e foi também chefe de Estado do Tibete até ao exílio forçado, em 1959, na sequência da invasão chinesa.

Desde então, vive em Dharamsala, na Índia, onde estabeleceu a sede do governo tibetano no exílio e reconstruiu a sua comunidade espiritual e política.

 

O Desafio da Sucessão: Fé, Geopolítica e Resistência

O futuro da instituição do Dalai Lama é motivo de tensão internacional. Embora Sua Santidade tenha garantido que haverá sucessor, o processo está longe de ser consensual.

O Dalai Lama já declarou que a sua próxima reencarnação não nascerá em território controlado pela China, mas sim "no mundo livre", atribuindo à Fundação Gaden Phodrang, criada em 2011, a responsabilidade por coordenar esse processo sagrado.

Este posicionamento é um claro desafio à pretensão de Pequim, que quer controlar politicamente a escolha do próximo Dalai Lama. A China exige que o nome seja retirado de uma "urna dourada", um método imposto durante a dinastia Qing. Mas a maioria dos budistas tibetanos rejeita essa imposição como ilegítima.

O precedente do Panchen Lama reforça essa desconfiança: em 1995, o menino reconhecido por Tenzin Gyatso foi sequestrado pelo regime chinês e permanece desaparecido até hoje. Em seu lugar, foi imposto um Panchen Lama "oficial", amplamente rejeitado pela comunidade budista.

 

Um Cenário de Rutura

O cenário mais temido — mas já antecipado pelo próprio Dalai Lama — é o surgimento de dois sucessores: um eleito livremente no exílio e outro imposto pela China dentro do Tibete.

“Se houver dois Dalai Lamas — um aqui, num país livre, e outro nomeado pela China — ninguém respeitará o segundo”, declarou em 2019.

Este cenário colocaria em jogo não apenas a legitimidade espiritual, mas também a soberania cultural e religiosa de um povo que há décadas vive sob ocupação e censura.

 

A Índia e os EUA em Alerta

A Índia acolhe atualmente mais de 100 mil tibetanos e vê o Dalai Lama como ativo estratégico na contenção da influência chinesa no Himalaia. Nova Deli já sinalizou que não aceitará uma sucessão manipulada por Pequim.

Os Estados Unidos, por sua vez, aprovaram em 2020 a Lei de Apoio ao Tibete, que garante ao Dalai Lama o direito de escolher sua reencarnação e ameaça sancionar qualquer interferência do governo chinês.

 

Uma Oração para o Mundo

No seu aniversário, o Dalai Lama preferiu acender uma vela no coração da humanidade, em vez de soprar as suas próprias.

“Agradeço-vos por usarem esta data para promover a paz de espírito. É isso que verdadeiramente importa. Sigam com coragem. Sejam bondade em ação.”

Tashi Deleg, diz ele, numa saudação tibetana que significa: “boa sorte e bênçãos”.

 

Para mais reflexões e análises sobre espiritualidade, direitos humanos e geopolítica asiática, assina a nossa newsletter em: 👉 https://www.estrategizando.pt/assinatura