A cena repete-se com uma precisão quase matemática. Sempre que a pressão sobre o Governo atinge um ponto crítico — seja pela saturação do SNS, seja pela incapacidade de dar respostas às grávidas sem médico de família, seja pelas falhas estruturais no Ministério da Saúde — surge, como que por milagre, um novo “supertema” a dominar as aberturas dos telejornais.

Um não-assunto que nasce inflacionado, cresce em polémica instantânea e, passado o vendaval, desaparece como se nunca tivesse existido.

Desta vez, o protagonista foi a legislação laboral. Um dossier cuja discussão é legítima, mas que se revelou subitamente “urgente” precisamente no momento em que os indicadores de saúde pública estavam a ser escrutinados com mais força do que nunca. A coincidência é demasiado perfeita para ser apenas coincidência. Na comunicação política, como lembrava Pierre Bourdieu, “o poder simbólico é um poder invisível, que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos”.

A ciência por detrás da manipulação de agendas

A estratégia é conhecida na literatura científica como agenda-setting: a capacidade de influenciar não aquilo que as pessoas pensam, mas aquilo sobre o que pensam. Maxwell McCombs e Donald Shaw demonstraram, na década de 1970, que os media moldam prioridades públicas ao selecionarem determinados assuntos como relevantes, independentemente da sua real urgência social.

Nas últimas décadas, investigadores como Shanto Iyengar aprofundaram o fenómeno, mostrando que os governos podem beneficiar deste mecanismo ao introduzir — intencionalmente — temas paralelos que funcionam como distratores narrativos. Estes “assuntos-escudo” permitem desviar a atenção de crises reais, fragmentar o foco mediático e gerar discussões emocionais que mobilizam o público, ao mesmo tempo que soterram problemas objetivos.

É uma táctica antiga. Mas o facto de ser antiga não a torna menos eficaz — nem menos preocupante.

Quando o barulho serve para esconder o essencial

No caso concreto, a saúde pública continua a enfrentar falhas graves:

  • a falta crónica de profissionais;

  • a incapacidade de garantir acompanhamento digno às mulheres grávidas;

  • tempos de espera incompatíveis com um país europeu;

  • e um Ministério da Saúde que oscila entre a reação tardia e a ausência de estratégia estrutural.

São problemas reais, urgentes e mensuráveis.
Mas, de repente, desaparecem da abertura dos noticiários, substituídos por polémicas fabricadas que ocupam espaço sem acrescentar resolução.

Como escreveu Noam Chomsky, “a distração é uma arma de controlo social; consiste em deslocar o foco do essencial para o irrelevante, mantendo o público ocupado com o que não transforma a realidade”.

O risco para a democracia portuguesa

O que está em causa não é apenas técnica de comunicação política. É um problema ético e democrático.
Quando um governo utiliza de forma recorrente mecanismos de manipulação indireta — sem mentir, mas desviando — está a fragilizar a confiança pública, a esvaziar o debate racional e a reduzir os cidadãos a meros consumidores de polémicas instantâneas.

Numa democracia madura, o papel do poder político não é criar ruído para sobreviver às tempestades. É enfrentá-las com transparência, assumir responsabilidades e comunicar com verdade factual, como defendia Daniel Innerarity ao lembrar que “a política é o lugar onde se deve dizer a verdade sobre o que é difícil”.

O que realmente importa

Enquanto se constrói o espetáculo paralelo, os problemas de fundo continuam sem solução.
E se há algo que a neurociência da comunicação nos ensina é que o cérebro humano tende a seguir estímulos novos e emocionalmente carregados — mesmo quando estes não têm relevância prática. A estratégia, por isso, funciona. Mas funciona à custa da qualidade do espaço público.

O país não precisa de mais “assuntos-escudo”.
Precisa de liderança clara, de comunicação séria e de políticas de saúde que devolvam dignidade a quem todos os dias recorre a um sistema que está a definhar.

A verdade não desaparece porque alguém falou mais alto.
Desaparece apenas quando deixamos de a procurar.

 

Fontes e referências

McCombs, M., & Shaw, D. (1972). “The Agenda-Setting Function of Mass Media”. Public Opinion Quarterly.
Iyengar, S. (1991). Is Anyone Responsible? How Television Frames Political Issues. University of Chicago Press.
Chomsky, N. (2010). Hopes and Prospects.
Bourdieu, P. (1991). Language and Symbolic Power.
Relatórios públicos do SNS – Ministério da Saúde: https://www.sns.gov.pt
Observatório Português dos Sistemas de Saúde: https://www.opss.pt
OCDE – Health at a Glance Europe: https://www.oecd.org/health/