Ora, esta percentagem de indecisos, à beira dos 40%, é mais do que um mero dado estatístico — é um sinal claro de incerteza, de desconfiança e, acima de tudo, de desinteresse ou desinformação. E, no entanto, não impede que manchetes e gráficos já apontem vencedores e vencidos. Como é possível apresentar uma "leitura" das eleições com tamanha margem de incerteza? Como se pode atribuir legitimidade a projeções quando a maioria ainda nem escolheu o seu caminho?
As sondagens, em teoria, são instrumentos de aferição do pensamento popular, pequenos retratos do momento. Mas como bem dizia o filósofo francês Michel Foucault: “O saber é poder.” E quando o saber é construído com base em métodos frágeis, e amplamente amplificado por canais de comunicação, então não estamos apenas a medir a opinião — estamos a moldá-la.
A sondagem em questão, apresenta um retrato que parece mais uma pintura impressionista: de longe tem forma, mas de perto revela-se difusa. Os 20% da AD tornam-se um número sem alicerce quando confrontados com os 39% de indecisos, os 8% de abstenção prevista, e os 2% que declaram voto nulo ou branco. Isto significa que mais de metade dos inquiridos ou não sabe, ou não votará, ou invalidará o voto. Ainda assim, a narrativa está montada — e começa a ecoar em telejornais, artigos e debates.
É importante lembrar que o efeito de priming — um conceito bem estudado na psicologia cognitiva — demonstra que a exposição repetida a determinadas ideias ou números pode influenciar as decisões futuras das pessoas. Quando se martela insistentemente na ideia de que determinado partido está à frente, mesmo sem base sólida, há um risco real de que essa "realidade" se transforme numa profecia autorrealizável.
O jornalista norte-americano Walter Lippmann alertava já em 1922, na sua obra Public Opinion, que o público não reage diretamente aos acontecimentos, mas sim às imagens que tem deles. E quem controla essas imagens — hoje, muitas vezes, as sondagens — pode influenciar o rumo da democracia.
Não se trata de negar a utilidade das sondagens, mas sim de exigir responsabilidade na forma como expressam o conteúdo através da palavra. Quando uma sondagem é apresentada sem crítica ao elevado número de indecisos, então ela transforma-se numa "não-sondagem", como bem apelidou Joffre Justino, diretor do Estrategizando. Mais do que uma previsão, é uma narrativa interessada.
E convém perguntar: quem beneficia desta narrativa? Quem lucra com a ilusão de estabilidade ou de vantagem eleitoral, quando o eleitorado real permanece em silêncio, indeciso ou ausente?
A imprensa tem um papel nobre — o de informar, questionar, esclarecer. Mas quando abdica dessa missão para se tornar megafone de resultados parciais, está a trair a confiança dos cidadãos e a comprometer a integridade do processo democrático.
É tempo de reavaliar a forma como olhamos para as sondagens. Devem ser lidas com cautela, contextualizadas com rigor e sempre apresentadas com uma nota de humildade científica. Porque, afinal, como dizia George Orwell: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é relações públicas.”
Que a democracia não se transforme num teatro de sombras onde os números brilham mais do que as consciências.
Lippmann, W. (1922). Public Opinion.
Foucault, M. (1975). Surveiller et punir.
Orwell, G. (1946). Politics and the English Language.
Dados da sondagem apresentados pela comunicação social portuguesa, março de 2025.
Artigo de opinião de Joffre Justino, citado no enunciado.