Vivemos tempos em que a política se transforma em espetáculo e as sondagens se tornam o guião antecipado de um filme que o povo ainda nem começou a ver.

Hoje, uma sondagem amplamente divulgada pela comunicação social portuguesa aponta a Aliança Democrática (AD), liderada por Luís Montenegro, com 20% das intenções de voto. Até aqui, tudo pareceria dentro da normalidade democrática, não fosse um “pequeno” detalhe: 39% dos inquiridos afirmaram não saber ainda em quem votar.

Ora, esta percentagem de indecisos, à beira dos 40%, é mais do que um mero dado estatístico — é um sinal claro de incerteza, de desconfiança e, acima de tudo, de desinteresse ou desinformação. E, no entanto, não impede que manchetes e gráficos já apontem vencedores e vencidos. Como é possível apresentar uma "leitura" das eleições com tamanha margem de incerteza? Como se pode atribuir legitimidade a projeções quando a maioria ainda nem escolheu o seu caminho?

Uma crítica velada, mas necessária

As sondagens, em teoria, são instrumentos de aferição do pensamento popular, pequenos retratos do momento. Mas como bem dizia o filósofo francês Michel Foucault: “O saber é poder.” E quando o saber é construído com base em métodos frágeis, e amplamente amplificado por canais de comunicação, então não estamos apenas a medir a opinião — estamos a moldá-la.

A sondagem em questão, apresenta um retrato que parece mais uma pintura impressionista: de longe tem forma, mas de perto revela-se difusa. Os 20% da AD tornam-se um número sem alicerce quando confrontados com os 39% de indecisos, os 8% de abstenção prevista, e os 2% que declaram voto nulo ou branco. Isto significa que mais de metade dos inquiridos ou não sabe, ou não votará, ou invalidará o voto. Ainda assim, a narrativa está montada — e começa a ecoar em telejornais, artigos e debates.

O poder das palavras e dos números

É importante lembrar que o efeito de priming — um conceito bem estudado na psicologia cognitiva — demonstra que a exposição repetida a determinadas ideias ou números pode influenciar as decisões futuras das pessoas. Quando se martela insistentemente na ideia de que determinado partido está à frente, mesmo sem base sólida, há um risco real de que essa "realidade" se transforme numa profecia autorrealizável.

O jornalista norte-americano Walter Lippmann alertava já em 1922, na sua obra Public Opinion, que o público não reage diretamente aos acontecimentos, mas sim às imagens que tem deles. E quem controla essas imagens — hoje, muitas vezes, as sondagens — pode influenciar o rumo da democracia.

Uma questão de ética democrática

Não se trata de negar a utilidade das sondagens, mas sim de exigir responsabilidade na forma como expressam o conteúdo através da palavra. Quando uma sondagem é apresentada sem crítica ao elevado número de indecisos, então ela transforma-se numa "não-sondagem", como bem apelidou Joffre Justino, diretor do Estrategizando. Mais do que uma previsão, é uma narrativa interessada.

E convém perguntar: quem beneficia desta narrativa? Quem lucra com a ilusão de estabilidade ou de vantagem eleitoral, quando o eleitorado real permanece em silêncio, indeciso ou ausente?

A responsabilidade da comunicação social

A imprensa tem um papel nobre — o de informar, questionar, esclarecer. Mas quando abdica dessa missão para se tornar megafone de resultados parciais, está a trair a confiança dos cidadãos e a comprometer a integridade do processo democrático.

É tempo de reavaliar a forma como olhamos para as sondagens. Devem ser lidas com cautela, contextualizadas com rigor e sempre apresentadas com uma nota de humildade científica. Porque, afinal, como dizia George Orwell: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é relações públicas.”

Que a democracia não se transforme num teatro de sombras onde os números brilham mais do que as consciências.

 

Fontes e referências:

  • Lippmann, W. (1922). Public Opinion.

  • Foucault, M. (1975). Surveiller et punir.

  • Orwell, G. (1946). Politics and the English Language.

  • Dados da sondagem apresentados pela comunicação social portuguesa, março de 2025.

  • Artigo de opinião de Joffre Justino, citado no enunciado.