Artista, mulher e negra, Sonia Gomes nasceu no interior de Minas Gerais, carregando em suas obras a geografia íntima de um lugar onde os tecidos moldam histórias. Sua cidade natal, hoje com menos de doze mil habitantes, viu surgir na década de 1870 a segunda fábrica têxtil brasileira, que resiste até nossos dias.

Em um Brasil que continua preso a visões elitistas da cultura, em especial quando se trata de corpos marginalizados, Sonia enfrentou anos de incompreensão por parte do circuito artístico. "Negro no Brasil não fazia arte, fazia artesanato", reflete, em crítica ao racismo estrutural que tentou desqualificar sua prática criativa, exigindo dela muita determinação e persistência para seguir transformando retalhos, dores e ancestralidade em arte.

Suas esculturas e instalações, feitas de fios e tecidos torcidos e de amarrações vigorosas, se espalham como arquiteturas orgânicas, como fractais em variadas cores e texturas. A consagração internacional – com participações em importantes mostras como as bienais de Veneza e de São Paulo e com obras no acervo de instituições como o MoMA, o Centro Pompidou, a Tate Modern e o Guggenheim – chegou como um contra-ataque poético. O mesmo circuito que hesitava em reconhecê-la viu o mundo celebrar sua genialidade.

Seu ateliê é um repositório pulsante de memórias. "Não descarto nada, são vidas vividas", diz, referindo-se a roupas, lençóis, bordados, fantasias de carnaval – enviados por conhecidos ou desconhecidos. Esses fragmentos se tornam matéria-prima para uma prática que ela define como "lenta": "Não tenho pressa. A obra tem o tempo dela, e o meu tempo é lento". Dessa serenidade e paciência nascem peças que costuram o íntimo e o universal: "Respeito tudo o que recebo... tenho material para mais uns trezentos anos de trabalho, mas não fico presa", completa, revelando que seu desapego permite a renovação do fluxo criativo: "o trabalho é para o mundo".

Recentemente, a artista esteve em Guiné-Bissau participando da Bienal MoAC Biss, vindo em seguida a Lisboa para a montagem e a abertura de sua primeira exposição em Portugal, “Torcer, amarrar e prender”, na Kunsthalle Lissabon, em parceria com sua galeria brasileira, a paulista Mendes Wood DM. Em conversa no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, sua fala pausada e seu sorriso doce e firme reafirmaram seu papel como tecelã de diálogos e de memórias. Há dança em seus gestos ao trançar panos e em sua coragem ao ocupar espaços antes negados. Sua obra transcende o objeto, é um corpo em movimento que entrega ao público não somente arte, mas um convite à reinvenção: das memórias que carregamos, das fronteiras que nos impõem, um gesto que tece e uma fala que reafirma: "Meu trabalho é minha maneira de exercer minha liberdade".

Serviço:

“Torcer, amarrar e prender”, Sonia Gomes – até 16/08/2025

Kunsthalle Lissabon

Rua José Sobral Cid 9E, Lisboa

www.kunsthalle-lissabon.org