Fascinante por uma razão muito simples: trata-se de obra ao mesmo tempo ficcional (no que tange à sua primeira parte, de caráter autobiográfico, na qual um conjunto de crônicas pode ser lido também como um petit roman); e histórica (no que tange à segunda parte, que esboça, através de entrevistas, um inédito panorama da literatura e da cultura europeias, particularmente da francesa, nos anos do pós-guerra). Mas é inegável tratar-se também de um livro que se pode classificar como didático (pela quantidade de conhecimentos literários, artísticos e históricos de uma época, transmitidos de forma simples e criativa). Seria oportuno propor ao Ministério da Educação no Brasil, que o adote como obra obrigatória em sala de aula, não só nos cursos secundários como em alguns segmentos dos superiores. No que tange ao seu conteúdo, ele traria resultados muito maiores do que os livros didáticos atualmente adotados, com poucas exceções.
Pela minha experiência pessoal, posso afirmar que os livros não didáticos possibilitam muito maior suporte de conhecimento do que os didáticos, razão porque a literatura foi tão importante na minha formação. De um modo geral, um país sem riqueza literária está destinado à pobreza espiritual e, consequentemente, ao atraso em todos os níveis do conhecimento e até mesmo à barbárie. Mário Vargas Llosa foi um dos maiores defensores do romance como produto potencialmente eloquente de qualquer cultura nacional. Em sua obra ensaística A verdade das mentiras, por exemplo, ele sustenta a tese de que este gênero literário, muitas vezes recheado de mentiras, é capaz de expressar muito mais verdades sociais, econômicas e históricas, do que qualquer outro gênero de escrita, literária ou não. As verdades estariam assentadas na base das mentiras, já que a mentira é um produto singular da imaginação, assim como o disfarce e a fantasia. A filosofia, a sociologia, a antropologia e congêneres, complementariam as “verdades do mundo”. Talvez tenha sido por isso que Rosa escolheu tantos romancistas, filósofos, dramaturgos e cientistas sociais para entrevistar: Cortázar, Sábato, Semprún, Ionesco, Brooks, Simenon, Peyrefitte, Gary, Braudel, Perroux, Serres, Barthes... enfim, escritores que marcaram fortemente a época em que ela viveu na Europa. Para completar seu precioso quadro, só faltaram Sartre e Simone de Beauvoir, que ela provavelmente não tenha tido oportunidade de entrevistar, embora os dois sejam os nomes mais citados no livro. No entanto, não esqueceu de Reymond Aron, Élisabeth Badinter, Françoise Giroud e Simone Veil. E, da área artística, nos contempla com ricas entrevistas de Alberto Cavalcanti, Norma Bengell e da emblemática Suzi Solidor.
É preciso dizer, no entanto, que as entrevistas publicadas não representam a totalidade do trabalho de Rosa Freire. Muitas outras, como as de Daniel Cohn-Bendit e Khomeini, por algum motivo especial não foram incluídas no livro. Mas, só as histórias dessas entrevistas já compensam perfeitamente a lacuna. Além do mais, o universo literário, político e artístico percorrido por Rosa é imenso. Nomes como Nicolás Guillén, Miguel Angel Astúrias, Mário Vargas Llosa, Manuel Scorza, Gabriel Garcia Marques, Pablo Neruda, Victor Jara, Salvador Allende, Louis Aragon, Louis Althusser, Régis Debray, Fidel Castro, Che Guevara, Amílcar Cabral, Mário Soares, Georg Lukács, Bernard Pivot, Milan Kundera, Wladimir Bukowski, Alexander Soljenitsyn, Jack Lang, André Malraux, Marguerite Duras, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Roger Garaudy, Jean Genet, Maurice Chevalier, Yves Montand, Juliette Gréco, Jacques Brel, Charles Aznavour, Charles Trenet, Jean Paul Belmondo, Jean Cocteau, Costa-Gravas, Jean-Luc Godard, Claude Lelouch e tantos outros artistas, cineastas e escritores são presença constante, como verdadeiros personagens do livro. Rosa precisou fazer um índice onomástico de sete páginas!
Parece até que naquele tempo ela já sonhava com o sucesso desse livro, que se tornaria hoje tão indispensável. Pois o que dizer de uma obra que fala de toda essa gente “puro sangue”, autênticas “fontes de conhecimento e de criação”? De uma obra que é ficcional e didática ao mesmo tempo? De um livro que é um “romance” e um “ensaio literário multifacético” a transitar por um mundo artístico e cultural diversificado, rico e mágico?
Que bem nos fez Rosa Freire d’Aguiar ao guardar consigo essas entrevistas. Não fora isso e, à parte nomes consagrados da literatura como Ernesto Sábato, Júlio Cortázar, Roland Barthes, Eugène Ionesco, Fernand Braudel e outros famosos, quem no Brasil se lembraria ainda de Alain Finkielkraut, Alberto Cavalcanti, Conrad Detrez, Jorge Semprún, Roger Peyrefitte, Romain Gari e, particularmente, de Élisabeth Badinter e Suzi Solidor? Poucos! À parte o métier de cada um, muitíssimo poucos, usando aqui um inevitável oxímoro.
Ao lado da riqueza jornalística e investigativa de Rosa, há outro aspecto que não se pode deixar de destacar em seu livro: a imagem da encantadora cidade de Paris. Lembro-me que, quando eu ainda era um adolescente apaixonado pela cultura francesa, em particular pelos seus poetas, chansonniers e escritores, sonhava com Paris como se fosse uma segunda terra natal e contava os dias que me tornariam adulto para assim poder conhecê-la de perto. Já homem feito, o problema tornou-se outro: dinheiro para viajar, que eu não tinha. Um dia, no entanto, ao me aproximar dos meus 21 anos, acabei resolvendo-o, de forma casual, apesar de que Sábato dizia que “não existe nada de casual no mundo dos homens”. Pousar em Paris foi gravar eternamente uma canção de amor dentro do coração: nunca mais deixei de voltar à cidade que sempre me encantou.
Mas não posso afirmar que tenha sido nessa primeira vez que descobri Paris. O conhecimento de fato só aconteceu quando morei lá por algum tempo, 16 anos mais tarde. E continuou acontecendo nas inúmeras viagens de retorno àquela que eu passei a chamar de “segunda pátria”. Nos interregnos das viagens, quase que anuais, os amigos brasileiros zombavam de mim, repetindo um jargão muito utilizado na época: “Fodido, mas em Paris!” Pois que fosse!
Penso que Rosa Freire d’Aguiar tem os mesmos antecedentes que eu no que tange a essa cidade mágica, embora com uma história muito mais rica e diferente. Tanto que faz citações interessantíssimas a respeito, como quem não pode fugir de um registro. Contestando Gertrude Stein, que disse que “Paris não é tanto o que a cidade nos dá, mas o que não nos tira”, ela declara haver descoberto o tanto que Paris lhe acrescentou. E complementa, lembrando que a mesma autora, num livrinho dos anos 1920, “a da geração perdida”, também dizia que “escritores deviam ter dois países, um a que pertencem e outro onde vivem”. Parece que ela sempre teve.
Tanto que, em suas crônicas, Rosa Freire esmiúça Paris como se pesquisasse, numa carte routière, com uma lupa nas mãos, todos os lugares por onde passou. Fala de tudo o que nela importa e o faz com extrema graça e senso de humor, dentro de um croquis romanesque que nos seduz e desperta a vontade de percorrer o mesmo caminho. Ao chegar em Paris, em 1973, ela vai direto para o Hotel Saint-Michel, no Quartier Latin, na Rue Cujas, uma transversal do Boulevard Saint-Michel, no coração do bairro mais popular da cidade, na famosa Rive Gauche. Na época, era tido como o hotel dos latino-americanos, antiga morada do poeta cubano Nicolás Guillén. A partir daí, Rosa não para mais de falar de suas ruas e praças, dos grandes boulevares nascidos das reformas de Haussmann, dos cafés e restaurantes, dos teatros e cinemas, das livrarias, dos monumentos, dos prédios e, especialmente, dos espaços onde morou, num relato emocionante onde tudo se transforma em história.
Quem nunca sonhou em conhecer Paris, cotidianamente citada na mídia como a cidade mais linda do mundo, palco da cultura mais universal e diversificada da história da humanidade? Aos que ainda não a conhecem e querem conhecê-la, aconselho a não deixarem de ler SEMPRE PARIS de Rosa Freire d’Aguiar. É a história de uma longa e rica vivência, que encanta e seduz. E se forem morar ou passar um lapso maior de tempo, aconselho também que complementem seus conhecimentos prévios e “preparatórios” com a leitura de outro livro precioso sobre a cidade, dessa vez da também escritora brasileira que lá vive há vários anos, Márcia Camargos: É CHIQUE VIVER EM PARIS? Com os dois, todos os caminhos estarão abertos.
Paulo Martins
Salvador, 25 de maio de 2025